A reserva de imóveis na planta permite negociar unidades antes da incorporação, sem alienação ou oneração, oferecendo oportunidades para incorporadoras e corretores, dentro dos limites legais.
A reserva de imóveis na planta, formalizada através do termo de reserva, antes mesmo do registro da incorporação imobiliária, tornou-se um tema relevante no mercado imobiliário após a promulgação da lei 14.382/22, que alterou a lei de incorporações imobiliárias (lei 4.591/64). A prática ganhou novo fôlego com a flexibilização imposta pela nova legislação, que trouxe debates sobre os limites da legalidade em transações realizadas antes do registro da incorporação. A reserva de imóveis antes da formalização completa da incorporação gera dúvidas e discussões, especialmente quanto aos riscos jurídicos e à viabilidade prática de sua utilização pelas incorporadoras.
Neste artigo, analisaremos as alterações legislativas e o impacto das recentes decisões judiciais sobre a reserva de imóveis na planta. Abordaremos os principais pontos da lei 14.382/22, explicaremos as novas possibilidades trazidas pela modificação do art. 32 da lei de incorporações, e discutiremos os desafios e cuidados que devem ser observados pelas incorporadoras para garantir a segurança jurídica dessas transações.
O contexto legislativo e a reserva de imóveis na planta
Até a promulgação da lei 14.382/22, o regime da lei de incorporações (lei 4.591/64) era restrito em relação à comercialização de unidades autônomas antes do registro de incorporação. O art. 32 da referida lei proibia expressamente qualquer tipo de negociação de frações ideais vinculadas a futuras unidades autônomas sem que o memorial de incorporação estivesse devidamente arquivado no registro de imóveis competente. Uma legislação rígida, que visava proteger o consumidor de transações realizadas em empreendimentos que ainda não tinham formalizado sua incorporação.
Art. 32 da lei 4.591/64 (redação original):
“O incorporador somente poderá negociar sobre as futuras unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos:
- título de propriedade de terreno ou contrato de promessa de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permissão de uso;
- histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidões negativas de ônus reais e de ações reipersecutórias, relativas ao imóvel e ao proprietário;
- projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes;
- cálculo das áreas das edificações, discriminando as que constituem dependências de uso comum e as suscetíveis de utilização exclusiva, com especificações das áreas úteis, acessórias e totais das unidades;
- memorial descritivo das especificações da obra projetada;
- avaliação do custo global da obra, atualizada à data da incorporação;
- discriminação das frações ideais de terreno, com as unidades autônomas que a elas corresponderão;
- minuta da futura convenção de condomínio que regerá a edificação ou o conjunto de edificações.”¹
Essa regra vedava qualquer tipo de negociação, conforme estipulado pelo art. 66 da mesma lei, que caracterizava como contravenção penal a comercialização de frações ideais de terreno sem atender às exigências legais². A justificativa da lei era proteger os consumidores, evitando que fossem induzidos a adquirir imóveis em empreendimentos ainda não regularizados e cuja viabilidade era incerta.
Com a promulgação da lei 14.382/22, houve uma mudança substancial. A palavra “negociar” foi substituída por “alienar ou onerar”, permitindo uma interpretação mais flexível sobre a viabilidade de celebrar termos de reserva antes do registro de incorporação. A alteração criou a possibilidade de que as incorporadoras assegurem aos interessados o direito de preferência de compra sobre futuras unidades autônomas, desde que essa reserva não configure uma alienação ou oneração efetiva da fração ideal de terreno.
Art. 32 da lei 4.591/64 (redação após a alteração pela lei 14.382/22):
“O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos:
- título de propriedade do terreno, contrato de promessa de compra e venda, cessão de direitos ou permissão de uso;
- histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidões negativas de ônus reais e de ações reipersecutórias, relativas ao imóvel e ao proprietário;
- projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes;
- cálculo das áreas das edificações, discriminando as que constituem dependências de uso comum e as suscetíveis de utilização exclusiva, com especificação das áreas úteis, acessórias e totais das unidades;
- memorial descritivo das especificações da obra projetada;
- avaliação do custo global da obra, atualizada à data da incorporação;
- discriminação das frações ideais de terreno, com as unidades autônomas que a elas corresponderão;
- minuta da futura convenção de condomínio que regerá a edificação ou o conjunto de edificações.”³
A principal modificação foi a troca do verbo “negociar” por “alienar ou onerar”, o que abriu a possibilidade de que o termo de reserva fosse utilizado para assegurar ao interessado uma futura aquisição, sem que isso configurasse alienação antecipada.
O caso paradigmático do Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Uma decisão recente do TJSC – Tribunal de Justiça de Santa Catarina forneceu uma interpretação relevante sobre a aplicação da nova redação do art. 32. No agravo de instrumento 5054611-66.2023.8.24.0000, foi analisado um caso em que uma incorporadora celebrou termos de reserva para futuras unidades autônomas em um empreendimento cuja incorporação ainda não estava registrada. A primeira instância havia proibido a prática, considerando que a reserva constituía uma venda antecipada. Porém, o TJSC reformou parcialmente a decisão, permitindo a reserva desde que não houvesse alienação ou oneração e que os consumidores fossem claramente informados da ausência do registro de incorporação.
A decisão destacou que, enquanto o termo de reserva não envolver a transferência de propriedade ou a imposição de qualquer ônus sobre a fração ideal do terreno, ele não violaria o art. 32 da lei de incorporações. Além disso, a decisão impôs um prazo de 90 dias para que a incorporadora regularizasse o registro de incorporação, vinculando a validade dos termos de reserva ao cumprimento dessa exigência. Essa decisão, embora provisória, abre um importante precedente para o mercado imobiliário.
Implicações jurídicas e desafios para o mercado imobiliário
Apesar da flexibilização trazida pela nova redação do art. 32, ainda há desafios e incertezas jurídicas. A principal questão que permanece em aberto é a possível relação entre os arts. 32 e 66 da lei de incorporações, uma vez que o art. 66, que penaliza a negociação de frações ideais sem o devido registro de incorporação, não foi alterado pela nova legislação4. Isso cria um conflito potencial, já que a prática de termos de reserva pode ser considerada, em alguns casos, uma “negociação” nos termos do art. 66.
Outro aspecto relevante é a publicidade das unidades reservadas. O parágrafo 3º do art. 32 exige que os materiais publicitários mencionem o número do registro da incorporação5. No caso de reserva de unidades antes desse registro, as incorporadoras precisam ser transparentes na divulgação, evitando práticas de marketing que possam induzir os consumidores a erro, o que poderia acarretar penalidades.
Ademais, as incorporadoras devem ter cuidado com a cobrança de valores antecipados. Para evitar que a reserva seja considerada uma alienação antecipada, é essencial que não haja qualquer tipo de pagamento que possa ser interpretado como sinal ou parte do preço, sob pena de violar a intenção da lei.
Conclusão
A lei 14.382/22 introduziu uma mudança significativa na lei de incorporações, flexibilizando as regras para a negociação de imóveis na planta e abrindo espaço para a utilização do termo de reserva antes do registro de incorporação. No entanto, apesar da mudança legislativa, o tema ainda exige cautela. A prática do termo de reserva pode ser uma ferramenta útil para incorporadoras garantirem o interesse de compradores e medirem a viabilidade de empreendimentos, mas é essencial que essa prática respeite os limites impostos pela lei para evitar riscos jurídicos.
A recente decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina fornece um importante precedente, mas o fato de ser liminar e a aparente contradição entre os arts. 32 e 66 indicam que o tema ainda está em evolução. Portanto, é indispensável que as incorporadoras adotem medidas de transparência e cautela, assegurando que os consumidores sejam claramente informados e que não haja qualquer alienação ou oneração antes do registro de incorporação.
- Lei nº 4.591/1964, Art. 32, redação original.
- Lei nº 4.591/1964, Art. 66, inciso I.
- Lei nº 14.382/2022, alteração do Art. 32 da Lei nº 4.591/1964.
- Lei nº 4.591/1964, Art. 66, inciso I.
- Lei nº 4.591/1964, Art. 32, parágrafo 3º.
Créditos: Migalhas Políticas